segunda-feira, 22 de julho de 2013

Pelo direito ao fracasso

Não tenho namorado
não falo inglês fluente
não tenho peso ideal
não ganho salário decente

Roupa nova não é todo mês,
pintar as unhas não é prioridade
às vezes é a sobrancelha
quem faz o seu próprio desenho

Uso sutiãs furados, tenho meias encardidas
meu quarto é verde, não rosa
Tem dias que a cara é crua
nenhum batonzinho para “animar”

Choro todas as lágrimas
ainda que não seja de bom tom
Não obedeço sem questionar
bebo vinho vagabundo, escancaro os dentes, solto palavrões, caio e levanto

E esses dedos e olhos tortos que me apontam
de nada me doem, nem chuviscam
Vocês leem todos os manuais e continuam sem entender...
Eu rasguei todos, prefiro fracassar

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Um de nossos problemas

Quantas portas deixamos de abrir
Quantas pessoas deixamos ir
enxergando apenas a couraça,
muito pouco do coração

Quantos olhos deixamos passar
por querer dar nome à tudo,
escrever um manual
Encaixotar o mundo...

terça-feira, 9 de julho de 2013

Verso sem pressa

Achado o caminho, não corra
trilhe olhando e vivendo tudo
De que vale engolir o mar
sem ter aprendido a nadar?

terça-feira, 25 de junho de 2013

Olho direito

Ao acordar, ainda deitada, vi seu olho direito. Aberto e desperto. Segui adiante e vi um azul sereno pintando o céu que se desnudava na janela. Recuei. O olho direito. Redondo e negro como jabuticaba, fixo na metade de meu rosto. Um olho novo, sem costume em me ver.

 Meu olho esquerdo se dividia entre o mundo que nascia lá fora, e o que nascia ali. Lá e cá. Perambulando na superfície.
Um pio. E outra vez. No terceiro pio o olho direito voltou a mim, piscava doce e lentamente. Pela retina passava alguma de coisa de brinquedos, andanças, medos, certezas, uma vida inteira de viver nenhum.

O olho olhava sem saber se aquilo que era visto valia. Valia um dia, umas manhãs, um café. Eu também não sabia se valia, se valíamos, se valia pensar. Sentia.

O mistério que saia do olho não me convidava a descobri-lo, apenas a dançar no escuro. Meus pés tomados rodopiavam, giravam...  Pétalas se desfaziam em meus dedos, sentia minha carne quente, meu sangue apressado, o girar, o torpor...

O vento por onde passa aviva as folhas, sacudindo-as, tirando-as do marasmo. De repente, como veio, se vai. Seguindo por outras estradas, atalhos, vielas, becos e avenidas.

Sacudindo outras folhas, arrancando-as de si mesmas. Algo parecido com esse olho sozinho.
Em um instante que me distraí, o olho direito sumiu.

Passado algum tempo, o encontrei junto com o outro, o que ficou debaixo da coberta naquela manhã. Extasiados, ressacados, trôpegos pela voracidade da noite...

O olho direito me olhou. Viu que eu ainda gosto de dançar no escuro...

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Querido, Jabor

Você disse não entender os manifestantes
e todo esse "ódio violento contra a cidade"
Ônibus queimados, fogueiras, depredação
por causa de um mínimo aumento na condução

Não passavam de "revoltosos da classe média"
Que pareciam querer "destruir o país"
Nada era legítimo, um ligeiro e frágil torpor
uma "burrice misturada com rancor"

Mas parece que o gás lacrimogêneo chegou à sua janela
e os policiais" vítimas de coquetel molotov", viraram vilões
Parece que você lembrou da época da ditadura 
quando no auge da repressão, fazia cinema às escuras

Mas nem tudo é tão ruim assim
se antes não valíamos 0, 20 centavos
se nossos gritos inúteis não serviam de nada
hoje, pra você, somos "melhores que os caras pintadas"

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Solidão

Dizem que a solidão é ocasião,
uma visita inesperada
um tropeço, uma criança que cai

Mas como o vento, vem e vai

É a cobra cega que finge não ver
o rastejar lento a me procurar
o pé da mesa espremido
a xícara envolta, o mergulho  


O café das manhãs
os passos arrastados
o que engulo, o que cuspo
o que habito em mim


Não deita nos caminhos
recolhe-se aos cantos, é silenciosa
Cobra o que a gente acredita
e não consegue viver


Cá está ela fitando o poema
dou de ombros
dormimos
Ao amanhecer, eis o primeiro bom dia


sexta-feira, 3 de maio de 2013

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Noite da Saudade

O vento da noite traz saudades do tempo em que não éramos,
ou éramos e não sabíamos. 
Do riso frouxo e despreocupado, da dose dupla de embriaguez...
Das músicas que nos embalavam e que agora não cantam mais.
Das comidas nascidas a quatro mãos, do verde que nos reservava
as cores mais ricas e vibrantes...
Das narinas que levavam ar aos seus pulmões lhe dando vida,
das unhas comidas, de dormir dentro de mim. 
Das manhãs em que éramos a pintura e a janela nossa moldura. 
Da felicidade doce e tranquila de casa do campo. 
De quando éramos plural... Mas algum vento passou e hoje vivemos no singular. 
Um dia retornarei ao presente, quando o passado não me passar mais.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

O não poder

Pode haver chamas na janela
ou infindas manhãs de outono

Pode ser uma lenta goteira
ou uma chuva de afogar os pulmões

Pode ser uma fruta fresca
ou um café solúvel

Pode ser a viela
ou a grande avenida

Pode ser uma dança na rua
ou um filme no sofá

Pode ser uma pimenta
ou um molhado melão

Pode ser a vida
e pode ser a morte

Pode ser o grito
ou a solidão

Pode ser eu e você
e pode ser que não

O amor pode

a gente não. 

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

A velha Filó

As correntes do portão se batiam exprimindo um som único. Eram as mãos ávidas e um tanto desesperadas de dona Filó, ao destrancar o cadeado, quando chegava pela manhã. Vinha sempre com alguma sacola e muita coisa para contar. Sua voz era fina e podia facilmente ser confundida com a de uma criança.
- Tudo bem por aqui? – Dizia acentuando o “i” enquanto espantava os cachorros para que, na fúria de suas alegrias, não a derrubassem ao chão.
Entrava, cumprimentava a papagaia, que ficava na entrada da casa, e sentava-se à mesa. Oferecia-lhe um café que, para ela, estava sempre gostoso. “Um dos melhores”, dizia. Enquanto ela bebia, eu preparava a tinta para pintar-lhe os cabelos.
Mesmo sem ter muito para onde ir, ela gostava de estar sempre arrumada. Uma vez por semana fazia as unhas dos pés e das mãos e estava sempre com os cabelos tingidos, e as orelhas nunca estavam peladas, brincos não faltavam. Se embonecava nem que fosse apenas para assistir à novela das seis. Aliás, narrava os desafetos e dissabores da mocinha, com tom melancólico e, às vezes, até dramático, como se as tristezas que afligiam a personagem também fossem as suas.
Rolando o saleiro na mão, ela contava um "causo" e, enquanto meu pensamento andava a passos largos, sua voz se esvaia lentamente, como um pássaro que cantando, bate as asas e segue o seu rumo.
Eu sabia poucas coisas sobre ela, entretanto, ouvira falar que não foram facéis as sete décadas que carregava nas costas curvas.
Um dia vi minha mãe aconselhando-a a aprender a ler, pois apenas seu marido era alfabetizado, fato que a deixava muito dependente dele. Entretanto, para ela, isso não era nenhum problema. Casada há quarenta anos, sempre que tinha oportunidade, dizia que a mulher devia, antes de tudo, respeito e obediência ao marido. Era o que viveu sua mãe e, também, a sua avó; bem como boa parte das mulheres da cidade em que nasceu, em Roraima.
Religiosamente, tratava de desenrolar seus afazeres a luz do dia, “Fico tonta se ando à noite”. Sempre desconfiei de que o breu da noite lhe abrisse uma janela de mistérios, e ela era uma mulher sem talvez. Era preto ou branco, certo ou errado, diga sim ou diga não; sem grandes divagações.
Aos parentes, vizinhos e conhecidos receitava de cabeça remédios caseiros. Assim, como cada panela tem a sua tampa, para cada doença havia uma planta. Arruda, guiné, alecrim, mastruz, boldo... Quem não acreditasse azar do sujeito, ela raramente ficava doente.
Ao fazer alguma comida especial, sempre trazia um pouco para mim. Quando voltava de viagem, um presentinho. Aplicando seus dotes como costureira, trouxe-me um dia um lençol feito por ela, o tecido era lilás e salpicado por centenas de pequenos coelhinhos brancos...
Com a tinta pronta, comecei a tirar-lhe o grisalho dos cabelos, depois os secaria. Após tudo, ao se olhar diante do espelho, do rosto enrugado de Filó um sorriso nasceu cheio de viço, como as crianças que deixam o ventre das mães para chegar ao mundo.
Pelas retinas, um tanto cansadas, vi que os cuidados que dedicava a ela, eram intermediários. Não importava o tom ou a textura dos cabelos. O crucial para ela era receber, nem que fosse por poucos momentos, algum afeto e atenção, que eram retribuídos com seus beijos e abraços a mim doados.
Tempo depois eu a vi, era verão e fazia frio. As árvores farfalhavam e faziam um arco sobre a ruazinha estreita que me levaria a ela. Enquanto todos estavam vestidos, ela estava desagasalhada, com uma blusa rosa de tecido fino. Envolta em flores murchas, os cabelos tinham um tom lúgubre de cinza, como o céu daquela tarde.
Surgiram-me tantas perguntas que queria ter feito a ela, que outrora vieram, mas que de maneira tão pueril eu as ignorei. Tantas coisas queria saber daquela mulher cujos olhos eram doces como frutas tiradas do pé...
Todo caso, de nada serve o fado do arrependimento. Não há mais perguntas, nem respostas, apenas o abraço frio do vazio.